O especialista indígena do Brasil tem sido um “alvo maior” nos últimos anos.

SÃO PAULO (AP) – Antes de desaparecer na floresta amazônica brasileiraBruno Pereira lançou as bases para um empreendimento gigantesco: uma trilha de 350 quilômetros que marcaria o limite sudoeste do território indígena do Vale do Javari, uma área do tamanho de Portugal.

O objetivo da trilha é evitar que os criadores de gado invadam o território Javari – e foi apenas a mais recente tentativa de Pereira de ajudar os indígenas a proteger seus recursos naturais e estilo de vida tradicional.

Embora Pereira tenha perseguido esses objetivos há muito tempo como especialista na agência de assuntos indígenas do Brasil conhecida como FUNAI, nos últimos anos ele trabalhou como consultor para a organização indígena do Vale do Javari. Isso porque depois que Jair Bolsonaro se tornou presidente do Brasil em 2019, a FUNAI começou a adotar uma abordagem mais conservadora para proteger terras e povos indígenas – e o governo promoveu intransigentemente o desenvolvimento em detrimento da proteção ambiental.

Profundamente frustrado, Pereira deixou a agência e embarcou em uma carreira mais independente – e perigosa – — Caminho.

Ele foi visto vivo pela última vez em 5 de junho em um barco no rio Itaquaí com o jornalista freelance britânico Dom Phillips, perto de uma área de fronteira com o Peru e a Colômbia. Na quarta-feira, um pescador confessou ter matado Pereira, 41, e Phillips, 57, e levaram a polícia para um local onde restos humanos estavam sendo recuperados; Desde então, eles foram identificados como os dois homens.

Falando à Associated Press várias vezes nos últimos 18 meses, Pereira falou sobre sua decisão de deixar a FUNAI, que ele diz ter se tornado um obstáculo ao seu trabalho. Depois que Bolsonaro chegou ao poder, a agência ficou lotada de legalistas e pessoas sem experiência em assuntos indígenas, disse ele.

“Não faz sentido eu estar lá enquanto esses policiais e generais do exército estiverem no comando”, disse ele por telefone em novembro. “Eu não posso fazer meu trabalho entre eles.”

Como assessor técnico da Associação dos Povos Indígenas do Vale do Javari, ou Univaja, Pereira ajudou o grupo a desenvolver um programa de vigilância para reduzir a pesca e a caça ilegal em uma região remota de propriedade de 6.300 pessoas de sete etnias diferentes, muitas das quais pouco não tinha contato com o mundo exterior. Ele e três outros não indígenas treinaram patrulhas indígenas para usar drones e outras tecnologias para detectar e fotografar atividades ilegais e fornecer evidências às autoridades.

“Quando se tratava de ajudar os povos indígenas, ele fazia tudo o que podia”, disse Jader Marubo, ex-presidente da Univaja. “Ele deu a vida por nós”

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Ricardo Rao, assim como Pereira, era um especialista indígena da FUNAI que preparou um dossiê em 2019 detalhando a extração ilegal de madeira em áreas indígenas do estado do Maranhão. Mas com medo de ser tão franco sob o novo regime, ele fugiu para a Noruega.

“Pedi asilo à Noruega porque sabia que os homens que acusava teriam acesso ao meu nome e me matariam, assim como aconteceu com Bruno”, disse Rao.

Bolsonaro tem defendido repetidamente o aproveitamento da vasta riqueza dos países indígenas, especialmente seus recursos minerais, e a integração dos povos indígenas à sociedade. Ele prometeu não conceder mais proteções às terras indígenas e disse em abril que desafiaria uma decisão da Suprema Corte, se necessário. Essas posições se opunham diretamente às esperanças de Pereira para o Vale do Javari.

Antes de partir, Pereira foi deposto como chefe do departamento de tribos isoladas e recentemente contatadas da FUNAI. A medida ocorreu logo após ele comandar uma operação que despejou centenas de garimpeiros ilegais de uma área indígena no estado de Roraima. Sua posição logo foi ocupada por um ex-missionário evangélico com formação antropológica. A decisão provocou protestos, pois alguns grupos missionários tentaram abertamente contatar e converter tribos cujo isolamento voluntário é protegido pela lei brasileira.

Colegas-chave de Pereira na FUNAI seguiram seu exemplo e pediram demissão, ou foram transferidos para cargos burocráticos longe da demarcação de áreas protegidas, de acordo com um relatório recente do instituto de estudos socioeconômicos e da organização sem fins lucrativos Indigenistas Associados, dos quais Atual é membro e ex-funcionários da FUNAI.

“Das 39 coordenações regionais da FUNAI, apenas duas são chefiadas por funcionários da FUNAI”, diz o relatório. “Dezessete militares, três policiais, dois federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública foram nomeados” sob Bolsonaro.

O relatório de 173 páginas, divulgado na segunda-feira, diz que muitos dos especialistas da agência foram demitidos, investigados injustamente ou desacreditados por seus líderes por tentarem proteger os povos indígenas.

Em resposta às perguntas da AP sobre as alegações do relatório, a FUNAI disse em uma declaração por e-mail que opera “em estrita conformidade com as leis aplicáveis” e não processa seus funcionários.

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No dia em que desapareceram, Pereira e Phillips dormiam em um posto avançado na entrada da principal rota secreta do território, sem passar pela base permanente da agência indígena na entrada, disseram moradores à AP.

Duas patrulhas indígenas disseram à AP que o casal carregava celulares do projeto de vigilância com fotos de locais onde pescadores ilegais estiveram. As autoridades disseram que uma rede de pesca ilegal está no centro da investigação policial sobre os assassinatos. A polícia disse em comunicado no sábado que a morte de Pereira foi causada por três ferimentos de bala, dois no estômago e um na cabeça, com munição típica de caça.

Pereira não foi a primeira pessoa ligada à FUNAI a ser morta na região. Em 2019, um agente ativo da FUNAI, Maxciel Pereira dos Santos, foi morto a tiros enquanto andava de moto pela cidade de Tabatinga. Ele havia sido ameaçado por seu trabalho contra pescadores ilegais antes de ser baleado. Este crime continua sem solução.

O assassinato de Pereira não impedirá que o projeto de demarcação da fronteira do Território Javari avance, disse Manoel Chorimpa, membro da Univaja envolvido no projeto. E em mais um sinal de que o trabalho de Pereira continuará, os esforços de vigilância das patrulhas indígenas começaram, levando à investigação, prisão e julgamento dos infratores.

Antes de ingressar na FUNAI, Pereira trabalhou como jornalista. Mas sua paixão por assuntos e línguas indígenas – ele falava quatro – o levou a mudar de carreira. Sua esposa, a antropóloga Beatriz Matos, o incentivava em seu trabalho, mesmo que isso significasse estar longe de sua casa em Atalaia do Norte e de seus filhos. Mais recentemente, eles moraram na capital do Brasil, Brasília.

Os povos indígenas da região lamentaram Pereira como parceiro, e uma foto antiga que circulou amplamente nas redes sociais nos últimos dias mostra um grupo deles sem camisa reunido atrás de Pereira enquanto ele apontava algo para eles mostra seu laptop. Uma criança se inclina suavemente em seu ombro.

Em comunicado na quinta-feira, a FUNAI lamentou a morte de Pereira e elogiou seu trabalho: “O funcionário deixa um tremendo legado para a proteção de povos indígenas isolados. Tornou-se um dos melhores especialistas do país nessa questão e trabalhou com o mais alto nível de comprometimento.”

No entanto, antes que os corpos fossem encontrados, a FUNAI havia emitido uma declaração sugerindo que Pereira havia descumprido o procedimento ao exceder sua autorização dentro do Território Javari. Isso levou a base da FUNAI a entrar em greve, alegando que a agência havia caluniado Pereira e exigiu a demissão de seu presidente. Um tribunal ordenou na quinta-feira que a Funai retire sua declaração de que “é inconsistente com a realidade dos fatos” e pare de desacreditar Pereira.

Rubens Valente, um jornalista que cobre a Amazônia há décadas, disse que o trabalho de Pereira se tornou inerentemente mais arriscado quando ele sentiu a necessidade de trabalhar de forma independente.

“Os ladrões de peixe viam Bruno como uma pessoa frágil, sem o status e o poder que a Funai lhe deu na região onde foi coordenador da Funai por cinco anos”, disse Valente. “Quando os criminosos perceberam que Bruno era fraco, ele se tornou um alvo ainda maior.”

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Maisonnave noticiada de Atalaia do Norte. A redatora da AP Débora Álvares contribuiu de Brasília.

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Fernão Teixeira

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